Marginalização I

AUTOR: Martin Page - Livro: Como me tornei um estúpido.




“Há pessoas para quem as melhores coisas não funcionam. Elas podem estar vestidas com uma roupa de caxemira, que terão sempre a aparência de mendigos; podem ser ricas, mas serão endividadas; ser grandes, mas nulidades no basquete. Eu hoje me dou conta de que pertenço à espécie das que não conseguem beneficiar-se das suas vantagens, aquelas para quem tais vantagens chegam a ser inconvenientes. [...]A inteligência é um erro da evolução. No tempo dos primeiros homens pré-históricos, posso imaginar perfeitamente bem, no seio de uma pequena tribo, todos os meninos correndo no mato, perseguindo os lagartos, colhendo bagas para o jantar; e pouco a pouco, em contato com adultos, aprendendo a ser homens e mulheres completos: caçadores, coletores, pescadores, curtidores... Mas, olhando mais atentamente a vida desta tribo, percebe-se que algumas crianças não participam das atividades do grupo: elas permanecem perto do fogo, protegidas no interior da caverna. Elas jamais saberiam se defender dos tigres-dentes-de-sabre, nem poderiam caçar; entregues a si mesmas, não sobreviveriam por uma noite. Se elas passam os dias sem fazer nada, tal não se dá por indolência, não, elas bem que gostariam de dar cambalhotas com os companheiros, mas não o podem. Ao pô-las no mundo, a natureza manquejou. Nesta tribo, há uma pequena cega, um rapaz coxo, um rapaz desajeitado e distraído... Assim, eles permanecem no acampamento o dia todo, e, como não têm nada para fazer e como os videogames ainda não tinham sido inventados, são obrigados a refletir e a deixar deambular os seus pensamentos. E passam o tempo a pensar, a imaginar histórias e invenções. Eis como nasceu a civilização: porque crianças com defeitos não tinham nada mais para fazer. Se a natureza não estropiasse ninguém, se o molde fosse sempre sem falha, a humanidade teria permanecido numa espécie de proto-humanidade, feliz, sem nenhum pensamento de progresso, vivendo muitíssimo bem sem prozac, sem preservativos nem aparelho de DVD dolby digital.
Eu tenho a maldição da razão; sou pobre, solteiro, depressivo. Há meses reflito sobre a doença de refletir demasiadamente e estabeleci com toda a certeza a correlação entre a minha infelicidade e a incontinência da minha razão. Pensar, tentar compreender nunca me trouxe nenhum beneficio, mas, ao contrário, sempre atuou contra mim. Refletir não é uma operação natural e fere, como se revelasse cacos de garrafa e arames farpados misturados com o ar. [...]Uma coisa que se pode admitir é que, freqüentar grandes obras, servir-se do seu próprio espírito, ler livros de gênios não asseguram a ninguém inteligência, mas tornam isso provável. Naturalmente, há pessoas que terão lido Freud, Platão que saberão fazer trocadilhos com os quarks e ver a diferença entre os falcões-peregrinos e um peneireiro, e que, todavia, serão rematados imbecis. Não obstante, potencialmente, estando em contato com uma multidão de estímulos e deixando o seu espírito freqüentar uma atmosfera enriquecedora, a inteligência encontra terreno favorável para o seu desenvolvimento, exatamente da mesma maneira que uma doença. Pois a inteligência é uma doença.”

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